Em 2009,
Adam Elliot
trouxe um quê próprio à técnica de stop motion: uma história que fugia
completamente da temática infantojuvenil e, ao mesmo tempo, trazia humor que
remetia o espectador às suas memórias de infância e adolescência. Os
trejeitos de seus personagens, aquelas situações-limites que tornam a vida
tão trágica quanto cômica – tudo dentro de uma narrativa rica em detalhes e
significados. Essa é a existência de
Mary e Max - Uma Amizade Diferente. Quinze anos depois, ele conseguiu fazer de novo, e
Memórias de Um Caracol
é tão sagaz e importante quanto.
Grace Prudel (Charlotte Belsey
quando criança, e
Sarah Snook
em sua versão jovem adulta) é uma jovem que tinha tudo para ter sua vida
transformada na mais mundana existência; e foi isso mesmo o que aconteceu.
Contudo, por conta do olhar de Elliot, quem assiste ao filme é mergulhado em
uma paleta quase incolor de personas que muito tem a dizer, mesmo que grande
parte esteja na narração em off, ou na troca de olhares e atitudes entre o
comum e o extraordinário dos pequenos momentos.
Aliás, Memórias de Um Caracol é recheado disso: o que poderia ser algo
banal se torna o ponto de partida para a construção de um cenário rico,
cujos detalhes estão em comum acordo com o que sua protagonista constrói
para quem a assiste: as cores estão no afeto, na esperança e na
resiliência diante de tudo o que a vida trouxe a Grace e seu irmão,
Gilbert (Mason Litsos
na versão infantil e
Kodi Smit-McPhee
na versão jovem adulta). Ambos começaram a vida unidos pelo fato de serem
gêmeos, ainda que contando com personalidades distintas, mas próximos o
suficiente para criarem uma espécie de bolha que os protegia do restante
do mundo.
Mas, a vida acontece, e Elliot sabe contar isso como poucos, usando o
stop motion como parte importante dessa narrativa repleta de humor
mórbido. Enquanto o espectador acompanha o primeiro ato de vida de Grace e
Gilbert, pouco a pouco se familiariza com um dos temas principais deste
longa: a solidão. Contudo, são as entrelinhas que ditam o restante da
narrativa, pois, quando os irmãos se tornam órfãos e se separam, é a
expectativa de um reencontro que os molda pelo restante dos próximos dias.
Mas, mais uma vez, a vida acontece.
Com a câmera ágil que capta todos os detalhes, em especial os caracóis
que permeiam a vida de Grace, o roteiro faz questão de manter o tom leve,
como se a protagonista contasse sua história não apenas para seu caracol
recém-liberto, e sim para a plateia que está detrás da quarta parede. A
partir desta visão, então, é possível entender o quanto a história vai e
vem entre a realidade de Grace e Gilbert com a crescente perspectiva
desesperançosa de que, depois de separados, nunca mais se veriam.
E, acredite, há temas profundos aqui: intolerância religiosa, ateísmo,
depressão, homofobia suicídio e o liquidificador dosado entre o
desenvolvimento dos três atos bem definidos no roteiro e o olhar sobre a
vida desses dois irmãos desajustados que se desencontraram na vida, cada
qual com sua dose de sofrimento. Há alívios cômicos? Com certeza! As
peripécias de Gilbert diante da família religiosa extremista que o
adotou são dignas de nota, enquanto amiga de Grace, Pinky (ou Mindinho,
na tradução, que aqui é dublada por
Jacki Weaver), rouba cada uma das cenas por ser aquele tipo de coadjuvante que dá
vontade de saber mais.
A partir deste parâmetro, então, Memórias de Um Caracol se desenrola como
um longa distante de qualquer vestígio de conteúdo infantojuvenil, mas
esta não era sua intenção, de qualquer forma. Ao conversar sobre temas
pungentes da vida adulta, o cineasta faz questão de apelar para as
esquisitices cativantes, algo que lembra o gótico dos tempos remotos de
Tim Burton, mas sem a tonalidade de fábula. Ao contrário, este é um soco
de leve no estômago de quem fantasia, de quem se deixa levar pelo ideal de
uma vida plena.
Se você não estiver preparado para sentir o amargor em sua experiência,
mesmo que os demais sabores cheguem depois, aposente seu caracol, porque
estas memórias merecem os fortes.
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