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Memórias de Um Caracol (2024) | Crítica

 

Foto: divulgação

Em 2009, Adam Elliot trouxe um quê próprio à técnica de stop motion: uma história que fugia completamente da temática infantojuvenil e, ao mesmo tempo, trazia humor que remetia o espectador às suas memórias de infância e adolescência. Os trejeitos de seus personagens, aquelas situações-limites que tornam a vida tão trágica quanto cômica – tudo dentro de uma narrativa rica em detalhes e significados. Essa é a existência de Mary e Max - Uma Amizade Diferente. Quinze anos depois, ele conseguiu fazer de novo, e Memórias de Um Caracol é tão sagaz e importante quanto.

Grace Prudel (Charlotte Belsey quando criança, e Sarah Snook em sua versão jovem adulta) é uma jovem que tinha tudo para ter sua vida transformada na mais mundana existência; e foi isso mesmo o que aconteceu. Contudo, por conta do olhar de Elliot, quem assiste ao filme é mergulhado em uma paleta quase incolor de personas que muito tem a dizer, mesmo que grande parte esteja na narração em off, ou na troca de olhares e atitudes entre o comum e o extraordinário dos pequenos momentos.

Aliás, Memórias de Um Caracol é recheado disso: o que poderia ser algo banal se torna o ponto de partida para a construção de um cenário rico, cujos detalhes estão em comum acordo com o que sua protagonista constrói para quem a assiste: as cores estão no afeto, na esperança e na resiliência diante de tudo o que a vida trouxe a Grace e seu irmão, Gilbert (Mason Litsos na versão infantil e Kodi Smit-McPhee na versão jovem adulta). Ambos começaram a vida unidos pelo fato de serem gêmeos, ainda que contando com personalidades distintas, mas próximos o suficiente para criarem uma espécie de bolha que os protegia do restante do mundo.


Foto: divulgação

Mas, a vida acontece, e Elliot sabe contar isso como poucos, usando o stop motion como parte importante dessa narrativa repleta de humor mórbido. Enquanto o espectador acompanha o primeiro ato de vida de Grace e Gilbert, pouco a pouco se familiariza com um dos temas principais deste longa: a solidão. Contudo, são as entrelinhas que ditam o restante da narrativa, pois, quando os irmãos se tornam órfãos e se separam, é a expectativa de um reencontro que os molda pelo restante dos próximos dias. Mas, mais uma vez, a vida acontece.

Com a câmera ágil que capta todos os detalhes, em especial os caracóis que permeiam a vida de Grace, o roteiro faz questão de manter o tom leve, como se a protagonista contasse sua história não apenas para seu caracol recém-liberto, e sim para a plateia que está detrás da quarta parede. A partir desta visão, então, é possível entender o quanto a história vai e vem entre a realidade de Grace e Gilbert com a crescente perspectiva desesperançosa de que, depois de separados, nunca mais se veriam.

E, acredite, há temas profundos aqui: intolerância religiosa, ateísmo, depressão, homofobia suicídio e o liquidificador dosado entre o desenvolvimento dos três atos bem definidos no roteiro e o olhar sobre a vida desses dois irmãos desajustados que se desencontraram na vida, cada qual com sua dose de sofrimento. Há alívios cômicos? Com certeza! As peripécias de Gilbert diante da família religiosa extremista que o adotou são dignas de nota, enquanto amiga de Grace, Pinky (ou Mindinho, na tradução, que aqui é dublada por Jacki Weaver), rouba cada uma das cenas por ser aquele tipo de coadjuvante que dá vontade de saber mais.


Foto: divulgação

A partir deste parâmetro, então, Memórias de Um Caracol se desenrola como um longa distante de qualquer vestígio de conteúdo infantojuvenil, mas esta não era sua intenção, de qualquer forma. Ao conversar sobre temas pungentes da vida adulta, o cineasta faz questão de apelar para as esquisitices cativantes, algo que lembra o gótico dos tempos remotos de Tim Burton, mas sem a tonalidade de fábula. Ao contrário, este é um soco de leve no estômago de quem fantasia, de quem se deixa levar pelo ideal de uma vida plena.

Se você não estiver preparado para sentir o amargor em sua experiência, mesmo que os demais sabores cheguem depois, aposente seu caracol, porque estas memórias merecem os fortes.

Nota: 9/10

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