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A Bruxa e Saint Maud: Os dois lados da moeda no horror que habita a culpa cristã | Artigo

 


A subversão sempre foi o papel central no cinema de horror. Cada vez que iniciamos uma jornada através de uma história aterrorizante, o que esperamos é que tal história entre em nossa mente e transforme nosso passeio divertido em uma caminhada nada agradável. E não é a toa que grandes filmes do gênero utilizam essa subversão de forma descarada para atiçar nossos sentimentos mais desconfortáveis diante da telona. O que seria de “O Exorcista” sem o horror do mal se apoderando do corpo de uma criança? Qual seria o motivo de “O Bebê de Rosemary” se não fosse a demonização da maternidade? Qual seria nossa reação a “Psicose” se a mocinha não morresse antes da metade do filme? E o grande desafio do horror é manter essa subversão atual e terrivelmente assustadora com o passar das décadas ao apresentar novas situações que nos desafiem a olhar o que não queremos ver.

Dito isso, tal esforço requer uma criatividade extra para qualquer cineasta que se aventure a fazer um filme de horror. Felizmente, a última década nos entregou grandes filmes que nos jogam nesse abismo do desconhecido e poucos conseguem ser tão aclamados quanto “A Bruxa” e “Saint Maud”. Pode ser até ‘’chover no molhado’’ ressaltar o que fazem dessas obras, grandes exemplares de filmes de terror que fazem sucesso, mas é muito mais interessante desembrulhar as camadas que trazem os arrepios que não se apoiam nos jumpscares (aqueles sustos ocasionais em filmes utilizando efeitos sonoros ou visuais)  e nem nos cortes bruscos que muitas pessoas esperam em filmes de terror. Buscar horror nas entrelinhas é muito mais complexo do que nos fazer ter sustos.


Não há como construir algo mais assustador do que não ter saída no bem para se apoiar. E talvez muitos pontos passem batidos nesse texto, porque são dois filmes essencialmente femininos e o autor que vos escreve se encaixa no gênero oposto. Mas é importante notar que um dos pontos mais cruciais dos horrores causados pela história da religiosidade cristã se arrasta até hoje para assombrar nosso dia-a-dia: a culpa cristã. E historicamente ainda mais pesada quando falamos do julgo feminino, quando a acusação sob o pretexto da salvação da alma é acentuada pelo risco da fogueira ou da tortura.

É nesse pretexto assustador que nascem “A Bruxa” e “Saint Maud”. É naturalmente aterrorizante que o mal seja o vilão da história. Todos nós já esperamos que no final o poder da oração seja mais forte que o capeta, – ou não, né Rosemary? – mas nos pega de assalto quando o bem é mais forte que o algoz do mal. E se a gente pensar bem, nós estamos diante de dois lados opostos da culpa cristã: A profanação e a santidade. Aí que a situação fica mais tensa por que não há pra onde escapar. A cena que melhor ilustra essa é a conversa em off por uma voz que surge sem imagem durante ambas as projeções: a voz de Deus e a voz do diabo. Ambas igualmente assustadoras em seus objetivos. E é aí que reside o medo.

A escolha de personagens femininas para guiar as histórias também é um destaque a parte. Tanto Thomasin, quanto Maud são duas personagens completamente consumidas pelo significado de serem mulheres em suas posições dentro de suas realidades, o que reforça ainda mais a culpa atribuída a cada uma delas em suas narrativas. Thomasin, acusada de ter feito um pacto com o desconhecido, se vê acuada pela própria família até ceder ao mal e Maud, tão inclinada aos cuidados e salvação da alma de sua paciente que vai ao extremo para garantir a santidade. Essas jornadas são conduzidas de maneira que a culpa torna-se a grande fator motor para seus atos finais, mesmo que os motivos sejam completamente distintos.

Nesse momento, amigo leitor, que eu te chamo a pensar sobre nosso papel dentro de cada uma dessas histórias. Somos apenas espectadores passivos desses filmes e nada disso funcionaria se não houvesse um pouco de Thomasin e um pouco de Maud em cada um de nós. Afinal, um filme necessita de nossa conexão com ele para nos causar sensações. Por mais que estejamos muito distantes dessas realidades, uma parte dela habita em nós para que possamos ser aterrorizados por essa história.

O desconforto que paira sobre obras como “A Bruxa” e “Saint Maud” não se demonstra no que é mostrado para nós, mas sim sobre o que sentimos com a obra. Não obstante, nenhum dos filmes apresenta alguma cena gráfica ou susto gratuito – Salvo alguns momentos de Saint Maud que o faz de forma majestosa – permite que o horror do espetáculo seja a sua identificação com o medo diante de crivo religioso. As tachinhas debaixo dos tênis all-star de Maud nada mais são do que a representação do medo da penitência que reside em nossa mente, seja ela fruto de sua própria religiosidade ou se você não é cristão, nem crê no que o filme retrata, seja seu próprio conceito histórico e cultura do que seja a penitência para os religiosos.

É importante notar que o grande vilão das duas obras não seja nem a figura de Deus ou do diabo e sim o pecado. A ação que desencadeia a ira de Deus sobre as duas personagens puxa a narrativa para o horror que mora nas consequências do pecado. Onde deveria haver consolo e busca para impelir o mal, há o medo da consequência. A crescente de tensão sobre esse tema é o que basta para ativar o medinho que há em todos nós e é o que dá mais combustível para que a sugestão seja mil vezes mais cruel do que jogar um jumpscare na tela. Afinal, levar sua mente a processar medos internos desconhecidos e não mostrar o medo é muito mais inquietante do que entregar de bandeja aquilo que seria óbvio.

Assim como uma cebola, ainda existem muitas camadas a descascar sobre os temas de ambos os filmes, principalmente se adotarmos um olhar mais crítico sobre questões de gênero. E é fundamental que ele seja abordado, afinal, olhar para o papel histórico de como as mulheres foram subjugadas constantemente pela religião, seja no passado como evoca A Bruxa ou nos dias atuais, como em Saint Maud, revela quase a metade do pânico que os filmes prometem.

Baseado na minha experiência particular, quando vi a Bruxa pela primeira vez no cinema (Saudades mundo sem COVID), fiquei estarrecido e realmente assombrado pela história. Em contrapartida, quase todas as opiniões que escutei nos corredores da saída foram ‘’Não teve sustos né?’’ ou então ‘’Não entendi o que o filme quis dizer’’ . Se formos parar para buscar significado, de fato há muito pano pra manga e necessita de um pouco mais de contexto social e histórico, mas o que me intriga nessas indagações é que apesar de todo o esforço que ambos os filmes trazem para te tirar do lugar comum, o público médio ainda sente a necessidade da espera pelo susto para sentir medo sem se entregar a história contada no cinema. Minha impressão é que todo potencial de assustar pelo medo, se perde porque algumas pessoas estão esperando a trilha sonora subir de supetão. Não é assim que funciona.

Para quem se livra dessas amarras de clichês de roteiro, o que fica é o mais puro desconforto de entender Deus como uma parte dos nossos medos primordiais, mesmo que esse medo habite no mais profundo interior do seu inconsciente, mas ele está lá esperando que filmes como os dois exemplares desse texto te forçam a trazer à tona a angústia de não ver o mal como escapatória diante do horror que há em ser um mortal que carrega culpa, metaforicamente, é claro. Fica ao seu critério aceitar o medo ou não.

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