O ambiente selvagem da indústria da moda para uma mortal luta de egos pode
não ser o mais criativo plot de desavença do cinema. Porém dentro do
microcosmo (ou macro visto a quantidade) de live actions da Disney baseados
em seu panteão de clássicos, soa como um respiro fresh no meio de tantos
filmes que nada mais fazem do que recriar o que já existe para novas
gerações. E é aí que está o pulo do dálmata gato em Cruella. Apoiado
na fama de uma das mais icônicas vilãs das animações, nós temos um filme que
não apenas se sustenta sozinho, mas também tem cacife suficiente em não
apenas requentar o que o público já espera e oferecer originalidade para uma
figura famosa sem descartar sua vilania.
Para começar com esse gancho, talvez o grande trunfo desse filme seja a
liberdade, tanto da personagem quanto da direção em não trabalhar numa
narrativa de purificação e bondade como aconteceu com sua irmã de estúdio,
Malévola. Por mais que seja a protagonista, desde o início temos uma
personagem que é moralmente duvidosa. Encrenqueira, ladra e totalmente
subversiva, o roteiro tem a possibilidade de criar uma Cruella nunca antes
vista. Aqui não temos a versão da animação clássica de 1961, a encarnação do
diabo do livro e nem mesmo se prende à recriar a memorável adaptação de
Glenn Close
para o filme live action de 101 Dálmatas. Cruella é livre pra ser Estella,
para ser louca, para ser o que a narrativa precisa com alguns toques de
nostalgia que não ofuscam nem um pouco a nova roupagem para a vilã.
Muito disso também é resultado do trabalho competente de atuação de
Emma Stone
e
Emma Thompson, afinal o que seria da nossa anti-heroína sem uma antagonista à altura. A
Baronesa é uma figura que rivaliza à Cruella não por ser o oposto, mas por
ser tão e até mais insana do que a própria. E Thompson faz com maestria e
requinte a narcisista Baronesa numa briga de holofotes durante todo o longa
numa corrida não apenas pela atenção da mídia dentro da narrativa do filme,
mas também pela atenção do espectador nesse jogo de gato e rato fashion.
E aí vai mais outro acerto de Cruella que é a direção de arte e figurinos.
O filme abraça a estética Glam e Punk Rock, desde a primeira criação de
Cruella na vitrine da loja de departamentos até na sua trilha sonora
recheada de clássicos do rock dos anos 60 e 70. E essa estética acirra ainda
mais a competitividade entre Cruella e Baronesa: enquanto uma sustenta um
visual requintado a outra chega com uma explosão de ousadia. Os figurinos
assumidos pela a duas vezes vencedora do Oscar
Jenny Beavan, por “Mad Max: estrada da fúria” e “Uma Janela Para o Amor”, são de tirar
o fôlego. A cada criação, seja de Estella ou de Cruella, nós temos uma nova
faceta da personagem que vai aos poucos numa crescente de garotinha
revoltada para uma grande chefona da moda que mataria por um casaco de pele
ou talvez não.
Nesse talvez não, reside um dos pontos fracos. Apesar da originalidade dada
para a personagem o filme não deixa a protagonista cruzar a linha limite de
crueldade que nos faria crer que esta mulher mataria 99 filhotes de dálmatas
por um casaco de pele. Quando se coloca o pé perto do “repudiável”, o
roteiro recua. Essas decisões acabam incomodando pela escolha da proposta do
filme, por que já que decidiram não torná-la uma personagem amável, a
sensação que temos é de covardia diante do que tem que ser feito para vestir
a carapuça diabólica da proprietária do Hell Hall.
Outro ponto de incômodo é a duração do filme, que só não chega a ser um
grande problema pela quantidade de plot twists no decorrer da história. Sem
contar a atenção para personagens descartáveis que não fariam diferença na
trama como Artie, o dono da boutique interpretado por
John McCrea
ou o personagem de
Mark Strong, que nada mais é do que uma muleta narrativa e nos proporciona o pior
momento do filme, que é a revelação explicativa do elo entre Cruella e
Baronesa. Era possível construir uma história coesa e mais rápida sem a
presença desses dois.
Então chegamos em Emma Stone que brilha com facilidade, cria sua própria
Cruella De Vil e descarta com respeito qualquer outra interpretação da
personagem. É fácil e gostoso de ver como a atriz transitar entre as duas
personalidades conflitantes por existência dentro do mesmo corpo. Estella e
Cruella têm suas diferenças e semelhanças, mas é possível ver aos poucos a
personalidade ameaçadora da vilã assumindo os trejeitos até matar sua versão
boazinha. O que não a impede de fazer pequenas referências à maneira louca
de dirigir na versão do desenho animado clássico ou a risada gutural que
ficou marcada na interpretação de Glenn Close.
Cruella chega como uma grata surpresa. No meio de tantos filmes da Disney
que apenas transferem a mesma história para personagens de carne e osso ou
cgi aprimorado, nesse momento temos uma centelha de criatividade e
originalidade com que não tem medo de fazer sua protagonista soar como
divertidamente maldosa e insana acompanhada de uma estética de encher os
olhos. Brilhante, má e um pouco louca Cruella definitivamente deveria ser um
norte frente às novas produções da Disney que reimaginam suas obras.
Nota: 8,5
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